segunda-feira, 24 de novembro de 2014

O excesso para abrir as vias do afeto

Na semana passada, Giselle nos passou um aquecimento que funcionou muito bem para mim.
Habitualmente, aquecemos corpo e voz mais mecanicamente e depois passamos para um exploração dos movimentos da bacia, que reverberam para todo o corpo em som e movimento. Em seguida vamos trazendo palavras, frases das personagens e improvisando pelo espaço, às vezes criando relação com outros, às vezes na nossa própria viagem.
Sei que nesse dia o comando foi que exagerássemos, fôssemos nos excessos, explorássemos outros lugares sem julgar, mesmo que aparentemente não houvesse ligação com a construção da personagem (esse é um constante exercício de [construção e desconstrução] para um não congelamento da forma que é bem interessante, penso).
Ir nesse máximo foi ótimo para mim. "Gastando" a energia no aquecimento, quando fomos passar de fato as cenas da peça, estava energizado, o corpo vibrátil, e ao mesmo tempo mais poroso ao que acontecia. Ter gastado antes me esvaziou, e não fui pra cena ligado no 120 - o que tenho descoberto ser importante para a escuta, a consciência da cena, a abertura. Resumindo: experimentar o lugar do excesso me ajudou a posteriormente dosar minha energia, não me ensimesmando a ponto de não me afetar pelos outros, pelo público, o espaço, etc (como já aconteceu). Abri, abrir, abrir... Lembrei do Ferracini na aula aberta: pra fora, necessariamente pra fora!

PS: Ontem no ensaio de domingo Giselle deu uma excelente direção antes de passarmos o primeiro bloco. Falou sobre afetar-se, estar no aqui-agora, deixar que as coisas e pessoas te atravessem, sobre não forçar a barra se determinada ação não vier - choro, riso ou quaisquer outras, de que o corpo nos dá muita emoção, nos leva a lugares potentes, se tivermos a percepção de ouvi-lo (estava relendo todo o blog agora e li uma anotação justamente nesse sentido); e falou sobre o prazer de interpretar, de não perdermos de vista o prazer de fazer aquilo. Foi minha melhor passada da cena do Brinde.

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Falta, meio e excesso

Quem eu seria se fosse Antônio?
Se tivesse me formado em Administração de Empresas na UnB, e hoje trabalhasse em uma multinacional, em um cargo de chefia? Ou em uma empresa de publicidade, ponte aérea Rio-São Paulo? Eu, outrora Francisco Carlos, já quis ser Roberto Justus, Francisco Justus. Existiu e existe Antônio Carlos em mim.

Preciso me aproximar deste personagem Paco~Antônio.

Ontem Lupe esteve no ensaio, foi a primeira vez que alguém de fora viu o que temos até o momento. Sua impressão foi de que estamos distantes do personagem, como se ele fosse uma meta, um objetivo láááá a ser alcançado, e não algo presente no aqui. Vê-se o desejo e a tentativa, mas que no geral estava fake, novelesco, global (ui). Comentou que esse fake é interessante, desde que seja a persona do personagem, a máscara que ele veste, quem ele tenta parecer ou aparenta ser.

“A arte é uma mentira que nos faz perceber a verdade”. Mentira difícil de fazer...

Falando da minha criação, a dica-comentário-ajuda-proposta é que eu tente menos. Para quem ele é hoje apareça (isso tem tudo a ver com a noção de esvaziar-se que tenho “procurado”). Se ele tem 24 anos, ele tem 24 anos. Não preciso tentar parecer mais velho. Falamos muito sobre um estado de não-representação (a arte de não-representar como poesia corpórea do ator, já dizia Ferracini...). Um estar presente que já diz, já passa informações. Sobre um estado, uma pulsão ou energia que serve de força motriz e que você domina e brinca com ela a cada dia, a cada ensaio ou apresentação. Você tem propriedade e segurança para manipular esse estado, mesmo dentro das marcas.

E nessa energia, como uma dança, é importante dar as nuances, transitar entre a FALTA, o MEIO e o EXTREMO. Foi citada a cena do “Nem Aí” em que eu tinha um estado de presença muito forte (cena da Euforia) e fazia de tudo para manter essa energia em cima, jogando com o que se fazia presente naquele dia: eu mesmo, os outros, o público, me deixando afetar constantemente.

Como posso fazer isso com todas as cenas? Ter consciência e domínio da cena, do estado, para poder brincar com ele.

Comentei sobre um trecho que li no livro “Um Sábio Não tem Ideia”. Jullien fala sobre esses três lugares:
“Uma pessoa pode conduzir-se de formas diametralmente opostas, e ambas podem ser meios, ambas podem ser justificadas; em outras palavras, todas essas experiências podem ser “desenvolvidas até o extremo” e ser meios. (...) Porque compreendamos direitor de onde vem o meio: não é parar no meio do caminho, mas é poder passar igualmente de um ao outro, ser capaz tanto de ser um quanto do outro, não se atolando em nenhum lado, é isso que constitui a “possibilidade” do meio.”

O figurino também já diz juntamente com as ações. As ações estão boas, agora é trazer pra perto mim. Sempre serei eu, Paco, interpretando. Por que esconder o intérprete? A Fernanda Montenegro é sempre a Fernanda Montenegro.
Ele também comentou que os momentos interessantes se davam quando parecia que eu não estava representando – na hipnose, quando falava junto com outros, ou quando estava sendo eu mesmo (Paco com o figurino), trocando uma ideia com a Júlia... E que Gustavo e Thaisa (surpreendentemente) eram os que mais se aproximavam de uma ação realista – verossímel – apesar de não alcançarem o público com potência no palco. Porque não estava tentaaaaaando.

E o público, mais uma vez. Não ignorá-lo. Se há uma abertura, por que falar com um som, uma cadeira, e não com uma pessoa?


Enfim, muitos questionamentos e um desejo de explorar isso agora. 

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Divagações e Encontro privê

Acho que independentemente do resultado, o processo tem sido rico.
Repetir, repetir, melhorar, pensar, repensar, questionar, mudar, manter, se relacionar, trocar, comungar, ser paciente, respeitar, ir além, resgatar, descobrir, viver a personagem, descobrir e representar outro mundo, outras histórias, acreditar em um discurso, horizontalizar alguns sentidos, verticalizar outros...
Estou no estágio em que acordo e durmo pensando no Antônio. Sonho com os ensaios, com os demais personagens, com as situações. Ora é esgotador, e eu preciso encher a cara para esquecer um pouco e conseguir dormir sem acordar no meio da noite. Em outros momentos é ótimo, porque sinto que está borbulhando, e a cada dia algo cresce. Dizem que quando você sonha em outra língua, quer dizer que ela está se fixando em você... Se estou sonhando com a personagem, talvez ela esteja entrando mais na minha pele.
Hoje trabalhamos repetidamente a cena do Encontro Privê. É a cena em que o lado perverso da personagem mais aparece. A direção diz que ele é ainda mais perverso do que estou fazendo, em alguns momentos aparece o Paco - ordenando com certa gentileza, a voz aguda às vezes aparece. Tento de outra forma, tento fazer diferente, falar outras frases, provocar mais. É difícil, a cena é complexa. Três ouvidos são necessários. Preciso estar atento a todos - Carla, Gabi, Natasha, público, às marcas, ao mesmo tempo esquecer as marcas, viver a cena. De certa forma eu comando a cena, e não paro. Cocainado!!! Tenho que manter a energia alta todo o tempo, ritmo acelerado, e deixar as micro-cenas dentro da cena finalizarem.
Você pode continuar dançando. Continua dançando. Mas dança mais igual homem.
O jogo de tensões também é intrincado. Tem que segurar a tensão, mas não deixar que ela se delongue demasiadamente.
Com cada garota de programa, há uma relação: Com Carla, Antônio é mais abusivo. Dá tapas, lambidas, enfia o pau no cú, fala que ela não pensa, manda e ela obedece, porque ele paga mais. Com Gabi há certa cumplicidade. Ela se aproveita da situação para tirar casquinhas de Carla. Monta nela com prazer, enfia o pau no cú dela com certo prazer. Gabi pega um rabicho da perversidade de Antônio. Ela conhece a brincadeira, não é a primeira vez. E entra no jogo, gosta do jogo. Pega no seu pau, na bunda. Quando Antônio oferece dois mil pau pra fazerem seu pau subir, ela é a primeira a ir, ambiciosa. Com a Natasha há um desprezo inicialmente. Sai fora. Durante a cena a coisa vai mudando... Antônio a provoca, mas se deixa levar também. Há um interesse nela, olhares. Quando finalmente ela o pega de jeito, por trás, dá uma encoxada... Algo acontece!!
E daí pra frente é entrega, tesão, pau duro, lambida, beijo, língua, boquete, orgasmo!!! Depois de muito tempo - 6 anos, um orgasmo gostoso. Antônio ri e grita, comemora de satisfação.
AHHHHHHHHHHH!!!!!!!!!!
Intenso.

Amanhã tem mais.

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Apresentação

Nesta cena Antônio está se arrumando em frente a um espelho, que é segurado por Susi, sua secretária. Ele a ignora. Está se preparando para um discurso, uma fala pública, pensando coisas, falando pra si mesmo.

A ação de falar se olhando no espelho simboliza sua característica narcisista e a super valorização da imagem. Ele é mais importante do que os outros. Estes, por não se assemelharem a ele, à sua imagem, é que estão errados, e isso lhe gera desapontamento e preguiça de se relacionar. Antônio tem o rei na barriga, as coisas acontecem em função dele, sempre giraram em torno dele, desde criança (mais sobre isso na cena seguinte). O texto expressa sua visão neo-liberalista de mundo, em que reconhece o abismo entre ricos e pobres mas não se incomoda com ele: o pobre é realmente escada, é massa necessária para o bem de poucos outros, "é importante para o crescimento". Deles, Antônio quer distância, a não ser quando contrata garotas de programa. Aí não importa de onde elas vem, e se são pobres, melhor ainda, pois pode humilhá-las com mais gosto. O interesse em chamá-las não é para transar, mas sim humilhá-las, exercitar sua perversidade e crueldade, se divertir às custas de sua superioridade e da inferioridade delas.  

 Os mendigos na rua estão ali porque são vagabundos, porque não trabalham. Antônio vê por essa perspectiva. Determinação social? Herança histórica? Exclusão? Antônio não se dá ao trabalho de pensar sobre a pobreza, é algo muito distante. Ele vê como preguiça - todos podem "construir uma vida, ser alguma coisa". As doações não são por solidariedade ou desencargo de consciência, mas sim pretextos para promover eventos nos quais ele encontra pessoas do seu meio, da high society, o alto escalão. Status e contatos.  

Apesar da fala refletir um pensamento egoísta e individualista, para Antônio ele não está corrompido. Por isso o tom é cínico e jocoso, até porque ele diz que trabalha para ter o que tem, mas na realidade não teve que lutar por nada, nasceu em berço de ouro e herdou a empresa e herança do pai. Quando vê Susi, seu olhar é de pena e escárnio. Ela é sua diversão diária. 

O Brinde

Nesta cena, Antônio está desiludido, fracassado. É o fim no começo - toda sua trajetória na peça já aconteceu. Não que ele tenha se transformado completamente, deixado de ser quem ele é - um personagem perverso - mas após ter (re)descoberto sua sexualidade, se apaixonado, perdido um pouco de sua casca, ele volta ao seu pequeno aquário. A pressão da sociedade o amarra de volta. Nele, há uma "consciência demasiadamente viva da sua própria degradação; a sensação de ter chegado ao derradeiro limite; de sentir que, embora isso seja ruim, não pode ser de outro modo; de que não há outra saída; de que nunca mais será diferente, pois, ainda que lhe sobrasse tempo e fé para isso, mesmo porque em que se transformaria?" (trecho de Memórias do Subsolo - Dostoiévski).
Ele terminou o romance com a travesti Natascha. Romance ~ amor ~ que lhe deu um sopro novo de vida, que o fez gozar a vida. Não suportou que seus funcionários soubessem de seu caso com uma travesti. Deixou de ir para o escritório, está indiferente a tudo. Moribundo. Olheiras nos olhos, descrença. Esgotado.
Em uma mão, uma pílula. Na outra, uma taça. O brinde é ao mundo lá de fora. Grande merda de mundo. Saúde. Ao mundo de dentro - "A verdade". Para ele a única verdade nesse momento é que está sozinho, e a morte não lhe parece ruim.
Junto dele, outros personagens. Natascha, Carla, Gabi, Susi, Catarina são as que ele melhor conhece. Outras garotas de programa das quais mal lembra o rosto. Virgínia e Mark, colegas de terapia que também mal conhece, nunca se interessou por eles.
Sentindo os efeitos da pílula, a morte iminente, tenta uma aproximação com Carla. Um pedido de desculpas desajeitado, agressivo. Roga por qualquer manifestação ou troca de afeto de alguém em relação a ele, mas não sabe rogar. Nunca precisou pedir, pedir com carinho, com cuidado (a não ser com Natascha). Antônio sempre mandou, e os outros obedeceram. Carla se desvencilha - com razão, as cicatrizes ficam. Aborda Natascha, e com os olhos tenta dizer, é a última chance de dizer que foi um bosta, que a ama, que sente muito, que não conseguiu aguentar a pressão, o auto-julgamento, que o perdoe, que fique com ele nesse último suspiro... Ela sai. Não dá mais tempo, é tarde demais. A merda está feita.
Então ele toma a pílula. Foda-se. Chamam isso de vida? Passa mal, cai, o corpo treme, ele grunhe. Natascha passa, ele agarra seu pé, desesperado. Novamente ela se desvencilha. Na cabeça, nada, só desespero pois tem consciência do que acontece. Vê os demais se estrebuchando no chão, vê as luzes no teto. Esse é o fim. Está morrendo sozinho. De repente, um prazer. De uma parte do seu corpo, de outra, de todas imerge um imenso prazer. O efeito do remédio se mistura ao prazer orgasmático, ao êxtase. Imagens passam velozes por sua cabeça. Os outros também gozam. Uma sinfonia de gritos, gemidos, risadas, farfalhar de corpos, sexos. Tudo é sexo!! É assim o fim!?


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segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Pesquisas na psicanálise para a terapia

Anotações:

Dependência estrutural da função paterna

Sexualidade abafada?

Caso Schreler: um pensamento “...de que deveria ser realmente belo ser uma mulher se submetendo ao coito...”, 

com certeza para Antônio viria repleto de culpa e incompreensão
angústia
sempre teve tudo
a minha casa era cheia de narcisos.

Queria ser igual ao pai, o admirava, como exercia poder sobre as prostitutas, mas não sentia desejo, pois era gay... isso gerou culpa e frustração, o que o levou a ser ainda mais narcisista, centrado no seu eu, e a replicar o hábito do pai – de contratar prostitutas. A mãe sempre dizia que ele se parecia com o pai, e que ele iria continuar os negócios. Havia uma obrigação de ser parecido com o pai.
Nunca se apaixonou
Pai.... Pai... (o pai depois passa a ser o rival – competição em relação ao desejo materno – complexo de édipo) : agressividade, matar aquele que ameaça o desejo.

Um espelho que deforme ??

O que, possivelmente, ocorreu com Narciso foi a falta da função paterna. Temos, então, um desejo materno que visa a morte e uma função paterna que não operou. Narciso não tinha outra saída senão a de ficar preso nessa relação narcísica mortífera. Não teve a condição de se constituir como sujeito desejante.


Pai... Pai... A minha mãe sempre dizia que eu me parecia com o meu pai, que eu ia continuar os negócios da empresa. E eu queria ser igual ao meu pai. Poderoso... A casa cheia de prostitutas. O perfume dos narcisos... A minha mãe não sabia, mas eu sabia das festinhas particulares! Eu sabia porque ele me levava. E eu queria ser igual a ele, comer uma, duas, três... Mas não dava, não dá, não vai, não vai, não ia... Então eu bebia e cheirava... Eu ficava tão louco. Eu queria matar meu pai, porque minha mãe... ela não sabia das festas... e mesmo assim ela nunca estava comigo e idolatrava aquele filho da puta.

Cena Terapia a partir dessa pesquisa e sugestões do Fernando depois da apresentação do texto bruto:

A casa tá cheia. Cheiro de whisky, cigarro, sexo. Tudo é sexo. Perfume barato perfume de narcisos. Minha mãe adora encher a casa de narcisos brancos.
Vc é tão parecido com seu pai.
Vc é tão parecido com seu pai.
Vc é tão parecido com seu pai.
(balança pinto)
Não sobe, não vai. Não sobre. Elas esfregam em mim mas não sobe. Elas esfregam mas não adianta.
(agarra pinto)
Eu sinto vontade de matar meu pai.
(gesto mãos aflito) Sua tola, mesquinha, as putas !
(gesto mão narcísico) A empregada viu.
PERGUNTA CATARINA: Quando foi isso, Antônio?
(vai pra criança) - –  Traz a minha mamadeira agora!! (choro-para-choro-para- choro-para, começa a pegar no pinto)
CATARINA: Tente ir em um lugar que vc nunca foi.
(faz buceto)
Eu queria ser a mulher de Deus.
CATARINA: Estimule esse ponto que nunca fui tocado.

(vai para cu)

Reflexões prático~teóricas

Sobre a primeira cena: Road to Nowhere.

Entramos com um comprimido na mão. Pegamos uma taça. Brindamos "ao Universo lá fora" e "a nós e a verdade". Tomamos o comprimido. Temos uma reação - vibrátil. Temos o maior orgasmo de nossas vidas. Morremos.

Sobre os gestos e ações dessa cena:

O gesto é uma ação periférica do corpo, não nasce do interno do corpo, mas da periferia. Ao contrário a ação é algo mais, porque nasce do interno do corpo, está radicada na coluna vertebral e habita o corpo. (Grotowski)

-> O movimento vibrátil vem de dentro: ao tomar o comprimido, ele gera um efeito interno, uma vibração que começa nos órgãos, estômago, pulmões, traqueia, bexiga, cérebro, veias, sexo, e se contamina para as extremidades, em espasmos. Na cabeça, um filme da vida da personagem (na concentração para a execução e percepção do movimento ainda não consigo trazer essas imagens, mas a princípio penso que Antônio se encontra desiludido da vida nesse momento. Ele se apaixonou pela primeira vez, viveu uma libertação sexual, o amor, ainda que questione o sujeito de seu amor. Mas seus funcionários descobriram o caso com uma travesti. Ele se envergonha, e a preocupação com a imagem, o auto-preconceito o impede de continuar. Termina o romance, não vai mais trabalhar. Se tranca, se vê completamente sozinho, portanto a morte não seria mal. "Ao Universo lá fora" - teria motivos para brindar ao universo lá fora? O Universo contribuiu para que ele se tornasse essa pessoa narcisista, umbiguista - a não presença dos pais, o dinheiro, o poder. À nós? Não se importa com as pessoas - a única pessoa com quem realmente se importou já não está na sua vida. A verdade - a morte - seria a única coisa que o faria brindar, uma possível libertação... A multidão também é hostil e horrível para ele, a multidão (e ele mesmo) o impedem de viver plenamente. Neste momento há uma grande tomada de consciência.

Ação física: um fluxo muscular-nervoso com total engajamento psicofísico em conexão ou com algo externo (seja objeto, espaço, outro corpo (ator ou espectador), imagem, e mesmo outra ação física) e que é formalizada, estruturada, ritmada, enfim, codificada no tempo-espaço. (Ferracini)


A ação física é relacional. A suposta “humanidade” e presença percebidas em uma ação física constroem-se nessa relação. Ela não mergulha em um suposto interior emocional do ator, ou se conecta com alguma essência humana profunda e interna. Muito pelo contrário, a ação física se conecta com o fora, ela é um corpo integrado - e por isso relaciona todo seu universo “interno” em fluxo – e projeta esse fluxo na relação com o mundo.

As bordas e fronteiras entre um suposto interno e um suposto externo se diluem na própria ação física. Ela - a ação - se projeta para fora ao mesmo tempo em que esse fora afetado, atinge e afeta ela mesma.

Interessante ressaltar a presença e afetação do outro nessa cena. Há uma atividade de construção interior, mas outras nove pessoas estão realizando a mesma ação física - estamos todos integrados, os gemidos, os corpos se debatendo no chão, os sons de orgasmo, as trocas de olhares - comungamos esse momento. A percepção do todo, como o todo afetae e como eu afeto o todo.


Na cena do espelho (que acontece posteriormente - a apresentação de Antônio), mesmo falando para mim mesmo, olhando no espelho, preciso pensar em quem afeto, em comunicar àquelas pessoas (mesmo que esteja falando merda) e em me deixar afetar por elas. Como eu me afeto se não há troca de olhares com o público? Talvez seja uma questão energética de compartilhamento do mesmo espaço: o teatro é um lugar de encontro e as fronteiras entre ator e plateia são tênues - a quarta parede nesse caso possui rachaduras, que permite o fluxo e troca de energia. Sem esquecer da reação da plateia, algo que ainda não sabemos como será.

Ação física (de Grotowski) corresponde à matriz (do LUME) que corresponde à Alegria (de Espinoza).

A capacidade de afeto de uma matriz determina sua própria potência. É o afeto e não a ação consciente do movimento que produz a potência da matriz. Quanto mais porosa a matriz, mais potente ela será. A capacidade de afetar-se pelo mundo e não a capacidade de atuação consciente
nele é o que define a potência da matriz.

Atividade ~ passividade

No corpo, assim como na matriz poética, o agir se produz pelo afeto. A preparação do ator deveria focar seu trabalho muito mais em sua capacidade e em seu poder de ser afetado do que em seu poder de afetar. É por isso que a pretensa intenção do atuador de “atingir o público” com sua
ação parte de uma premissa equivocada. O ator busca ser afetado pelo mundo ao seu redor para, com isso e por meio disso, agir diferenciando-se em suas micro-ações. Esse poder de ser afetado também não deve ser confundido como causa-efeito: o atuador não se afeta para depois agir. Ele, em realidade, age com o afeto, no afeto, pelo afeto.

***

-> Sobre a memória e como ela pode potencializar a cena do orgasmo. Nós partimos do corpo e do movimento para gerar em nós um estado sensorial (e irradiá-lo para o público), mas fiquei pensando também em outros sentidos que não vieram na experimentação (para mim): cheiros, sabores e imagens que podemos trazer para nos ajudar a potencializar esse estado. Mas me parece que as memórias acionadas nessa cena não são imagéticas, elas tem essa característica ontológica citada por Ferracini. Também na cena da terapia, essa questão da memória pode ser pensada:

A memória virtualiza o passado em um presente que sempre passa. Mas o passado virtual não se traduz por arquivos acumulados em formas de lembranças concretas, mas precipita-se em uma duração virtualizada que se in-corpora independentemente de nossa vontade e gera uma espécie de memória ontológica ou ainda uma memória em duração corpórea.

Mas a ação de atualização não é uma ida do presente ao passado em uma espécie de re-vivência da lembrança, mas uma atualização é uma vinda do passado ao presente que gera uma recriação da lembrança enquanto potência virtualizada no aqui agora. É por isso que toda atualização é uma criação: a vinda do passado ao presente recria a passado nesse mesmo presente.


Acredito que haja uma espécie bem específica de atualização de memória que é a sua atualização corpórea para um fim estético. Estamos falando, agora, da capacidade do atuador em buscar uma atualização dessa virtualidade de memória, recriando-a em um fluxo corpóreo poético (...) realizada por meio de ações físicas ou matrizes corpóreas. (...) Atualização de vivências e experiências com o corpo, pelo corpo, através do corpo.

Sobre a Vivência e complementando:

Claro que não estou falando aqui de um elemento meramente mental no sentido de uma lembrança racional, mas essa vivência como virtualidade potente no próprio corpo-memória, ou seja, não devemos entender memória e vivência como experiências mentais ou meramente imagéticas, localizadas em um ponto específico chamado cérebro, mas devemos entender essas vivências como vivências corpóreas, vivências-subjéteis. Será que ainda necessitamos provar o corpo integrado? Memória é corpo, já gritavam tantos pesquisadores teatrais. Continuemos a gritar, então...

Por meio do afeto, e não da ação consciente no espaço-tempo e da precisão de sua mecanicidade, ampliamos o conceito de “treinamento”: um “treinar” pode estar inserido na ação de, por exemplo, sair às ruas e vivenciar experiências, observar os fluxos cotidianos, olhar as relações sociais a ponto de gerar um afeto, uma experiência e uma vivência intensiva. Um ensaio pode ser um estado de trabalho constante na busca de experiências e suas vivências e, é claro, o próprio estado cênico se configura como uma fonte constante de experimentação. O território do “treinar” é muito mais amplo que um espaço-tempo destinado à realização de exercícios mecânicos ou busca de precisão plástica. O “treinar” se configura muito mais como uma postura ética na relação com o corpo, com o espaço, com as relações sociais, com suas próprias singularidades. Um atuador deve estar em constante treinamento ou, em outras palavras: um performador deve estar na busca constante de fissurar seus limites de ação procurando uma potência possível de expressão, seja em uma sala de trabalho, seja no ensaio de um espetáculo, seja dentro do próprio espetáculo, seja em um happening ou uma performance. No espetáculo e na ação performática se treina, assim como no cotidiano pode se encontrar estados cênicos. O importante é encontrar potências de experiências que produzem vivências e que em si mesmas mantêm sua força vital: experiência como força motriz que lançadas como virtuais potentes na memória dos atuadores serão sua fonte inesgotável de organicidade e vida em toda sua força de diferenciação.

(In Revista Urdimento, artigo Ação Física: Afeto e Ética, de Renato Ferracini)